Doppelgänger - Crime
Homem. Mulher. Outro homem, outra mulher. Muitos. Será possível que eu tenha em mim ambos o sexo? Será possível que eu abarque em meu corpo mais de um? Olho-me no espelho e não reconheço homem nem mulher, entretanto reconheço a mim. Um homem me fala ao pé do ouvido, enquanto uma mulher ajeita-me a roupa. Estou pronto para entrar, pelo menos é o que pensa meu pai. Subo no meu monociclo e girando sobre minha cabeça cinco garrafas de vidro atravesso a cortina vermelha. O circo esta cheio, pessoas que não conseguiram lugar se amontoam na armação de ferro que concebe a escada, sentadas nos degraus olham-me com um ar sorridente, estão todas aparentemente felizes. Recebo as gargalhadas do publico, mas não sei do que riem, será que por de baixo dessa maquiagem não percebem eles a minha tristeza? Enquanto pedalo em círculos lembro-me dos acontecimentos recentes, que tem transformado minha vida em um pesadelo concreto.
Chamo-me P., vivo no circo desde que nasci, não digo que more no circo, pois nunca ficamos mais de um mês em lugar algum, a exceção duma ou outra vez quando vamos a capital. Minha mãe faleceu assim que nasci e meu pai, de nome Charles, é o apresentador e faz tudo da parte administrativa do circo. Ele e meus tios, por parte de pai, foram muito novos para o circo, logo que minha mãe engravidou. Eles tiveram de fugir do meu avô que queria matar meu pai por ter deflorado sua pequena filhinha, minha mãe na época tinha dezesseis anos. Os meus avos eu não conheço nem por foto, todavia não sinto lá muita falta dessa família, o circo sempre foi uma grande família pra mim. Da minha infância não tenho do que reclamar, sempre me diverti, afinal era eu uma criança no circo. Fui crescendo e o encanto, tenho de confessar, foi perdendo o brilho, já não possuía mais aquele fascínio. A adolescência passou sem muitos conflitos além do normal. Bebida, cigarro e mulheres. Até o dia em que ele chegou.
Ouvi o barulho das garrafas caindo no chão. Só tinha uma ainda intacta que segurava com a mão esquerda. Rapidamente vi Charles, apresentador e palhaço principal, que possuía a metade do circo e era o chefe por ser também o mais antigo. Quando consegui virar o monociclo em sua direção percebi que ele carregava uma torta, e obviamente não era para ninguém ali dentro daquela tenda comer, mas sim para sujar o palhaço. Recebi a tortada e sendo impossível me manter ainda equilibrado fui ao chão. A platéia ria de se acabar enquanto eu me acabava nos cacos de vidro. Sem problemas, ossos do oficio. Sai discretamente enquanto entravam meus tios já encima do mastro principal. Enquanto me dirigia para o lado de fora da arena vi que já acendiam a roda de fogo, onde meus tios teriam de cruzar para, num instante, darem as mãos e se salvarem da queda livre factivelmente provocada pela deusa Gravidade, a mãe de todas as quedas. Sempre que via aquela roda em chamas lembrava-me do cuspidor de fogo que sempre me dizia quando jovem que “a roda de fogo para qual nos atiramos deixa de ser a roda da morte e passa a ser à roda da vida, da vida renovada, no momento em que do outro lado retorna o artista”. Sabias palavras de um homem que passou a vida toda engolindo fogo para ter do que comer e por fim morreu queimado no seu próprio erro. Corda bamba do circo que de um instante para o outro delimita quem vive e quem morre, sempre no último instante, e no silêncio do publico assustado padece a morte real do artista que não encontrará porto seguro para mais uma vez ser ovacionado pelas palmas da platéia.
Todavia deixemos essas vicissitudes de lado, o meu problema era muito maior; talvez não tão grande quanto o do engolidor de fogo, que não tem mais volta, todavia maior no sentido que também não tem solução. E então naquele momento comecei a viver essa história, que lhes escrevo agora e em verdade.
Continua...
Imagem de Marc Ferrez
A vida itinerante - Ensaio Circense
Independente apesar de interligado, igual a vida.