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Era uma segunda-feira de sol, daquelas que ou você esta na praia ou é melhor nem sair de casa. Marcelo esperava o sinal fechar no centro da cidade, tirou o celular do bolso e viu a hora, meio-dia e quinze, “estou atrasado” pensou. Colocou o celular novamente no bolso, ouvia o primeiro cd do Bem Harper, Pleasure and Pain junto com Tom Freunf, com os fones de ouvidos ligados no celular. Pensava na vida enquanto isso. Ela havia se tornado um grande marasmo, não havia nada de novo nunca, a rotina da vida cosmopolita o consumia. Não trabalhava e mesmo assim não conseguia fugir do marasmo. Um senhor ao seu lado de terno e gravata suava feito um porco, pensou “nunca vou trabalhar de terno”, e uma senhora no seu lado oposto se balançava em cima do solto alto bico fino vermelho, tinha pés bonitos a senhora, pensou “nem de salto alto” e por dentro riu.
Um rapaz atrapalhado um pouco a frente de onde ele estava deixou cair os papes que carregava no chão. Em desespero quase chorava enquanto de joelhos recolhia a papelada apressadamente, parecia um boy de alguma empresa dessas que existem no centro da cidade, mesmo que para Marcelo no centro da cidade só existissem bancos e livrarias. Uma folha voou um pouco mais distante e quase caiu em uma poça daquelas que ninguém sabe como foi parar ali já que não chuvia a dias. O rapaz olhou para o lado em que vinha o transito e com um suspiro, de alivio por não vir carro, e de nojo por não ter caído na poça, pegou a folha de papel.
Um outro rapaz que estava ao seu lado se precipitou em atravessar a rua e com dois saltos e uma corridinha chegou até o outro lado. O boy que ainda estava atrapalhado e se esforçando ao máximo para que as folhas não fugissem dele mais uma vez viu apenas o rapaz avançando e com um passo tímido avançou também. O sinal que ainda estava fechado eximia o motorista de toda culpa, mas não há necessidade de culpa para matar uma pessoa, talvez no céu as pessoas só matem com culpa, mas no inferno em que vivemos podemos matar mesmo sem culpa.
Marcelo que via tudo um pouco mais atrás soltou um grunhido baixo, bem baixinho, era a palavra “cuidado” que vendo que seria lançada tarde de mais se agarrou a garganta e lá mesmo sucumbiu. O boy veio parar aos pés de Marcelo, a poça de sangue já alcançava seu tênis e ele, entretanto, não recuou. Primeiro foi a freiada, o som da borracha tentando parar aquele carro preto enquanto cantava no asfalto. Depois os impactos, o do corpo no carro, seco, sucinto, rápido, instantâneo, e logo em seguida o do corpo no chão, da mesma forma. Quando o carro jogou o boy para o ar Marcelo já havia soltado o grunhido, mas não sabia se não conseguia se mexer ou se nem ao menos tentava. As folhas que o rapaz segurava voaram pelos ares, o que foi bonito, aquelas folhas todas que caiam como pétalas velando o corpo que já se encontrava no chão. Formava uma espécie de tapete no chão, ao redor do corpo, a princípio brancas e depois se avermelhando, como uma rosa desabrochando. O boy finalmente estava livre dá incumbência de carregar as folhas, de velá-las, agora eram elas que o velavam.
Marcelo foi o único que permaneceu estático, as pessoas se afastaram e agora voltavam a se amontoar ao redor do corpo, mulheres se agarravam a conhecidos e choravam em um misto de curiosidade e nojo, hora olhando hora escondendo o rosto. Os homens olhavam como se tivessem experiência nessas coisas, queixos erguidos e olhar de analise. Ao fundo se escuta um “esse ai já era”. O rapaz que se contorcia um pouco parou de se contorcer, abriu os olhos e olhou diretamente para Marcelo que teve o primeiro impulso de recuar, entretanto algo dentro dele que ele não sabia dizer o que, o fez permanecer, e o fez também se abaixar. O jovem disse alguma coisa, no fundo as sirenes já tocavam. O motorista do carro andava de um lado para o outro com as mãos na cabeça, segurava um celular, as pessoas ao seu redor diziam repetidamente “o senhor não teve culpa, nos vimos tudo, pode ficar tranqüilo”. Mas o que incomodava o motorista não era a culpa, era a moral. Ele ferira gravemente alguém, mesmo que sem a intenção.
O rapaz disse alguma coisa, Marcelo, porém não escutará o que, estava um inferno barulhento aquele lugar. O boy estendido no chão após dizer alguma coisa ainda olhava fixamente para Marcelo como se não existisse mais ninguém naquele lugar além dele. Encontra partida Marcelo o olhava de volta, e nessa troca ele viu os olhos do rapaz se apagando se apagando, até ali não existir mais brilho algum, foi quando alguém o puxou e disse “com licença eu sou paramédico deixe me passar”. Ele voltou para onde as outras pessoas estavam ainda olhando o corpo, porém sendo empurrado cada vez mais pra longe, até que quando deu por si já não conseguia mais ver o corpo. Percebeu que ao redor daquele rapaz se formou uma ilha de gente, mas que todo o resto continuava. Como uma espinha no meio do rosto que não impede o seu funcionamento, que na verdade o próprio rosto nem nota, a cidade continuava e as pessoas não estavam nem ai, a vida continua.
Marcelo continuava parado ali, o rapaz foi colocado dentro da ambulância com o rosto coberto e levado, uma senhora puxa a manga da camisa e pergunta “você conhecia aquele rapaz?”, Marcelo tira o fone e responde “não sei”, e a senhora “sinto muito”. Ele sabia que não o conhecia, mas pensando nele agora era tudo tão familiar, mesmo que tudo na sua memória compreenda os cinco minutos que o observará e os outros dois em que ficou olhando seu corpo caído no chão. Bem Harper havia acabado e agora tocava Strokes. Ele voltou para o sinal que novamente se encontrava aberto e esperou até fechar, olhou para os dois lados quando fechou e atravessou a rua olhando as folhas manchadas de sangue que ainda permaneciam no asfalto.
Imagem de Andre Dahmer
Música Juicebox - The Strokes
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